POR: Rolse de Paula
“BLACK FRIDAY” E DIREITO DO CONSUMIDOR: A IMPORTÂNCIA DO “PACTA SUNT SERVANDA“
Não se sabe ao certo quando as práticas comerciais tiveram seu início na História da Humanidade. O que se pode estimar é que civilizações bem antigas precisavam, de algum modo, desenvolver mecanismos de trocas, a fim de obter produtos outros que satisfizessem suas necessidades. Por exemplo: um pescador, caso precisasse de uma certa quantidade de batatas e cenouras (ou outros tubérculos), poderia muito bem trocar parte de sua produção de peixes pelos vegetais que tanto desejasse. Segundo relatos constantes no Antigo Testamento, alguns povos do Oriente Médio eram exímios mercadores, como os fenícios. Também no Antigo Testamento (ou Escrituras Hebraico-Aramaicas) podem ser vistas passagens que falam sobre práticas não tão saudáveis da mercancia, como a usura e sua aplicação, por vezes, desregrada.
É público e notório que onde existe sociedade, existe Direito (em latim: Ubi societas, ibi ius). Mas, por outro lado, onde existe comércio, também existe Direito (em latim: Ubi commercium, ibi ius). O passar dos séculos mostrou que foi necessário elaborar uma série de normas de conduta para que as chamadas relações comerciais não viessem a representar vantagens excessivas para uma das partes, e prejuízo exorbitante para a outra das partes envolvidas. Mesmo porque, o aperfeiçoamento da democracia, juntamente com o surgimento de relevantes instituições para a vida em sociedade (como a caracterização dos três poderes, a necessidade de elaboração das leis, e, principalmente, as normas de caráter penal, que regulam e penalizam, de modo mais pesado, as violações que maculam a convivência entre os seres humanos), provou a necessidade de haver um arcabouço de normas organizadas, que levasse à prática da pacificação social. E com as práticas comerciais, aliadas às normas obrigacionais, isso não se mostrou diferente.
Conforme ensinamentos de MARIA HELENA DINIZ[1]: “Essa intensificação da atividade econômica, provocada pela urbanização, pelo progresso tecnológico, pela comunicação permanente, causou grande repercussão nas relações humanas, que por isso precisaram ser controladas e regulamentadas por normas jurídicas, que compõem o direito das obrigações. […] Como se vê, nele se contêm as normas reguladoras das relações entre credor e devedor, que delineiam, por exemplo, certos conceitos jurídicos de obrigações, das várias espécies de contrato, de cessão, de responsabilidade civil, et cetera, possibilitando a formação de contratos válidos, a apreciação da responsabilidade civil, et cetera. […] Josserand[2] vai mais longe, pois entende que o direito das obrigações constitui a base não só do direito civil, mas de todo o direito, por ser seu arcabouço e substrato, visto que todos os ramos jurídicos funcionam à base das relações obrigacionais“.
O Direito Civil tem seus mecanismos baseados no chamado dever jurídico. Esse dever jurídico é conceituado como um tipo de comando imposto, pelo direito objetivo, ou ordenamento positivo, a todas as pessoas a fim de que observem certa(s) conduta(s), sob pena de virem a receber uma espécie de sanção pela não-obediência ao comportamento específico prescrito pela norma jurídica. Incluem-se em tal conceituação, por exemplo, o dever de não danificar o que pertence a outrem, o de pagar as dívidas contraídas, o de respeitar a vida (e prezar pela sua incolumidade), o dos pais zelarem pela educação dos filhos, et cetera. Caso o dever jurídico não venha a ser cumprido, a pessoa que sofreu a lesão estará autorizada pelas normas jurídicas a exigir, por meio dos órgãos competentes do poder público, ou de processos legalmente instituídos, o seu cumprimento ou alguma compensação pelo mal causado. Isso leva a outro primado relevante. Por mais que o Direito Civil seja norteado pela autonomia das vontades, o princípio do “pacta sunt servanda” deve ser observado em sua inteireza, posto que os acordos devem ser fielmente cumpridos, a fim de que não haja discussões deveras desgastantes.
Dentro do Direito Civil, um outro ramo desenvolveu-se de tal modo, que acabou por ganhar sua autonomia. Trata-se do Direito do Consumidor. Muito desse desenvolvimento se deu com o aperfeiçoamento da conceituação de responsabilidade civil, a qual, segundo AGUIAR DIAS, citado por RUI STOCO[3]:
[…] pode resultar da violação, a um tempo, das normas, tanto morais, como jurídicas, isto é, o fato em que se concretiza a infração participa de caráter múltiplo, podendo ser, por exemplo, proibido pela lei moral, religiosa, de costumes, ou pelo direito. Isto põe de manifesto que não há reparação estanque entre as duas disciplinas. Seria infundado sustentar uma teoria do direito estranha à moral. Entretanto, é evidente que o domínio da moral é muito mais amplo que o do direito, a este escapando muitos problemas subordinados àquele, porque a finalidade da regra jurídica se esgota com manter a paz social, e esta só é atingida quando a violação se traduz em prejuízo.
No Brasil, foi com a Constituição Federal de 1988 que foi colocada em prática a proteção ao consumidor, que, em 1990, foi devidamente normatizada com a edição e promulgação do Código de Defesa do Consumidor, onde constam todos os instrumentos necessários para materializar a Política Nacional de Defesa do Consumidor.
É lógico que as práticas comerciais, e consumeristas, no Brasil acompanham o que existe de mais moderno pelo mundo afora. E dentre essas práticas, muitos dos comerciantes brasileiros optaram por adotar a chamada “Black Friday“. Apesar de o seu significado literal traduzido dizer respeito à “Sexta-Feira Negra“, em verdade, trata-se de um evento, desenvolvido pelo atacado e pelo varejo, na última sexta-feira de novembro, para renovar os estoques visando o comércio da época de Natal[4]. Os produtos são oferecidos aos consumidores com grandes margens de descontos. Mas, torna-se necessário manter a atenção, pois, por mais que os preços sofram decréscimos nos produtos e serviços oferecidos, a qualidade dos mesmos deve ser mantida. Resumido, não é porque o produto e o serviço vieram a ser oferecidos com grandes descontos, que a qualidade dos mesmos deve sofrer queda.
Conforme anteriormente dito, em Direito Civil, e no Direito do Consumidor, os pactos devem ser mantidos em sua inteireza. Mesmo porque, em havendo a oferta do produto ou serviço ao consumidor[5], sempre deve ser lembrado que a oferta vincula o proponente (ou policitante, num linguajar mais técnico).
O Estado deve realizar a proteção integral do consumidor, a fim de que o mesmo não saia prejudicado nas negociações encetadas. Na oferta de produtos e serviços, os fornecedores devem ficar muitos atentos, e os consumidores também, ao chamado dever de informação. O consumidor deve saber tudo a respeito do uso do produto, ou do modo como usufruirá do serviço oferecido.
Essa preocupação com a defesa do consumidor também é vista em solo europeu. Em Portugal, por exemplo, “não há um código específico a reger as relações de consumo, sendo certo, todavia, que os interesses e direitos dos consumidores portugueses estão regulados em leis esparsas (com destaque para a Lei nº 24/1996 e demais diplomas advindos de diretivas mais recentes da União Europeia) e na própria Constituição da República, especialmente em seu artigo 60“. Além disso, na República Portuguesa “[…] há ainda menção expressa e respaldo constitucional ao fato de que a publicidade é disciplinada por lei, sendo proibidas todas as formas de publicidade oculta, indireta ou dolosa. E acrescenta, em seu derradeiro dizer, que as associações de consumidores e as cooperativas de consumo têm direito, nos termos da lei, ao apoio do Estado e a ser ouvidas sobre as questões que digam respeito à defesa dos consumidores, sendo-lhes reconhecida legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses coletivos ou difusos. Daí se depreende que os consumidores portugueses têm proteção constitucional no que se refere à defesa de sua qualidade de vida (em termos macros) e não só, mas também, em relação à boa qualidade dos bens e serviços à sua disposição, ao seu preço competitivo, justo e equilibrado, à proteção da saúde, à segurança, à eliminação do prejuízo e à própria formação e informação“[6].
Logo, atentar-se de modo correto ao dever de informação, no que tange ao oferecimento de produtos e serviços aos consumidores, mesmo em épocas de “Black Friday“, além de demonstrar respeito aos clientes, também se traduz em preservar a dignidade da pessoa humana, posto que as negociações devem guardar, em sua formação e em sua conclusão, a integralidade da função social do contrato, que é não propiciar que uma parte se veja em vantagem excessiva, em detrimento do prejuízo, ou perda de outrem. O enriquecimento sem causa é conduta vedada, e deve ser combatida de todos os modos.
Palavras-chave: Responsabilidade Civil, Direito do Consumidor, Direito Obrigacional.
REFERÊNCIAS
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DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro (2º Volume – Teoria Geral das Obrigações). 10ª edição, aumentada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 1996.
FIÚZA, Ricardo, e; TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Código Civil Comentado. 6ª edição, revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2008.
FREITAS, José Lebre de. Introdução ao Processo Civil: Conceitos e Princípios Gerais. 2ª edição. Coimbra: Coimbra, 2009.
GARCIA, Leonardo. Código de Defesa do Consumidor (Comentado Artigo por Artigo). 15ª edição. Salvador: Juspodivm, 2020.
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ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração e Programa de Ação de Viena. 1993. Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/viena.htm.
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SENNA, Daniel. “Opinião – O Direito do Consumidor em Portugal”. Disponível no sítio: https://www.conjur.com.br/2020-set-24/daniel-senna-direito-consumidor-portugal – acesso em 13/11/2020.
SILVEIRA, Vladimir Oliveira da, e; SILVA, Elio Ricardo Chadid da. A Efetividade dos Direitos Humanos como Fator de Desenvolvimento nas Fronteiras Globalizadas do Mercosul. In Revista Jurídica Unicuritiba, vol. 04, n° 53, Curitiba, 2018. pp. 420-447.
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da, e; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos Humanos: Conceitos, Significados e Funções. São Paulo: Saraiva, 2010.
STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil (Responsabilidade Civil e sua Interpretação Doutrinária e Jurisprudencial). 5ª edição, revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
[1] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro (2º Volume – Teoria Geral das Obrigações). 10ª edição, aumentada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 1996. Págs. 04 e 05.
[2] JOSSERAND. Cours de Droit Civil Positif Français, v. 02, pág. 02; LIMONGI FRANÇA, Rubens. “Direito das Obrigações”. In Enciclopédia Saraiva do Direito, v. 26. Pág. 85.
[3] STOCO, Rui. Tratado de Responsabilidade Civil (Responsabilidade Civil e sua Interpretação Doutrinária e Jurisprudencial). 5ª edição, revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. Pág. 91.
[4] Teve seu início nos Estados Unidos, espalhou-se pelo mundo anglófono, e, hodiernamente, essa prática é adotada em todo o mundo.
[5] Por vezes chamado de oblato, em linguagem mais técnica.
[6] Parágrafo baseado em: SENNA, Daniel. “Opinião – O Direito do Consumidor em Portugal”. Disponível no sítio: https://www.conjur.com.br/2020-set-24/daniel-senna-direito-consumidor-portugal – acesso em 13/11/2020.
Rolse de Paula é advogada, fundadora do Projeto COCAJU – Congresso de Orientação de Carreira Jurídica, Diretora da Associação Brasileira de Advogados em Curitiba, Especialista em Direito Aplicado – Escola da Magistratura do Paraná, “Mentoring” para candidatos da Primeira Fase do Exame Unificado da Ordem dos Advogados do Brasil. Também está à frente do RCP Advocacia & Consultoria Jurídica (www.rcpjuridico.adv.br)
Áreas de Atuação: Direito Civil, Direito de Família, Direito de Propriedade, Direito do Consumidor, Direito do Trabalho, Direito Empresarial, Direito Previdenciário.