Patricia Travassos* | F2 Conteúdo
Um dos aspectos mais impactantes, e pouco comentados, das crises pelas quais o mundo vem passando nos últimos anos, é a exposição de nossa dependência e fragilidade em relação à tecnologia e de como isso afeta as pessoas comuns em todo o mundo. Um bom exemplo é a crise no mercado global de chips iniciada com a pandemia e, passados dois anos, reforçada pela guerra na Ucrânia.
A primeira onda da Covid paralisou linhas de produção de chips na China e, com isso, afetou toda a cadeia de produção de computadores e produtos inteligentes. Agora temos a guerra e, seguindo a cadeia de suprimentos da indústria de TI, já é possível antever problemas. Isso porque a Ucrânia fornece hoje mais de 50% do gás neon utilizado em todo o mundo na produção de chips.
Some-se a isso um novo lockdown na China, com fechamento das fábricas que fornecem chips para grandes marcas, e podemos dar adeus às previsões de normalização dos mercado de chips até 2023. E o impacto é grande, já que hoje temos chips em tudo, do celular às Smart TVs, passando pelos cartões de crédito e débito.
Foram estas crises recentes que nos fizeram perceber que a produção global de um produto que hoje é fundamental para todos está concentrada nas mãos de pouco mais de meia dúzia de grandes fabricantes, a maioria deles operando na China. Mesmo que os chineses se preocupem em atender o mercado internacional, o decreto de lockdown em algumas regiões mostra que as incertezas podem durar bastante.
Não se trata apenas de garantir o fornecimento de chips, mas de perceber o quanto a tecnologia está nos colocando à prova, principalmente nossa capacidade de nos relacionar diplomaticamente, de colaborar e de sermos responsáveis. É preciso ter em mente que, se não for a pandemia ou a guerra, amanhã pode ser um acidente natural ou uma mudança climática a afetar uma região distante, mas diretamente conectada ao nosso quintal pela tecnologia.
Não é possível mais ignorar isso e algumas empresas do setor de tecnologia caminham nessa direção. O diretor de marketing de produtos da Intel, Américo Tomé, conta que desde 2009 a empresa segue uma política que restringe a compra de matéria prima de áreas de conflito ou de regiões onde haja abuso de direitos humanos. Os Estados Unidos e a União Europeia têm leis bastante específicas sobre isso, que restringem a compra do que eles chamam de “minerais de conflito”, que são aqueles extraídos de países em conflito, como a República do Congo e países vizinhos. Nos Estados Unidos, as regras finais de minerais de conflito da Comissão de Valores Mobiliários (SEC) foram promulgadas nos termos da Seção 1502 da Lei Dodd-Frank da Reforma de Wall Street e Proteção ao Consumidor (“Regras de Minerais de Conflito”).
De acordo com elas, as empresas de capital aberto devem relatar à SEC a presença de minerais de conflito nos produtos que fabricam ou se eles são necessários para a produção ou funcionalidade de tais produtos. A lei define “minerais de conflito” como estanho, tântalo, tungstênio e ouro, bem como os derivados de cassiterita, columbita-tantalita e wolframita (esses materiais coletivamente chamados de metais “3TG”). Muitas empresas, como a própria Intel, Unisys, Indra, iRobot, Seagate, Siemens e Apple, entre outras, têm políticas de conformidade se comprometendo a não comprar minerais produzidos em áreas de conflito.
Dessa forma, a indústria não só não financia conflitos, como enfraquece o potencial econômico de uma região com base em fatores como comportamentos sociais e éticos que sejam questionáveis, e esse pode ser um caminho.
Outro caminho tem sido adotado por algumas empresas que estão investindo no desenvolvimento de cadeias de suprimento em áreas mais seguras. É o caso da própria Intel, que em março anunciou que vai investir até € 80 bilhões (US$ 89 bilhões) nos próximos dez anos para construir, na Europa, a cadeia de suprimentos para chips semicondutores, o que inclui duas novas fábricas de chips na Alemanha.
A ideia é investir em todas as partes da cadeia de fornecimento de chips – incluindo pesquisa, fabricação e embalagem – em países como França, Irlanda, Itália, Polônia e Espanha. As novas fábricas fornecerão chips para os clientes, bem como para os próprios produtos da fabricante, ajudando a acabar com a dependência dos fornecedores chineses.
*Patrícia Travassos é diretora de criação da Prosa Press e colunista de tecnologia e inovação da CNN Brasil