
Recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) sobre a incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) na distribuição desproporcional de lucros evidencia um movimento, cada vez mais rigoroso, do Fisco e do Judiciário no exame de planejamentos patrimoniais e sucessórios.
O caso envolveu uma empresa familiar que realizou a distribuição desproporcional de lucros entre seus sócios, beneficiando de forma significativa os herdeiros dos controladores. Pouco tempo depois, esses herdeiros receberam, via doação, a nua propriedade integral das quotas sociais dos pais, que reservaram para si o usufruto patrimonial e político vitalício.
Para o Fisco e para o Judiciário, a distribuição desproporcional realizada configurou, na realidade, uma doação disfarçada, sujeita à incidência do ITCMD. A justificativa principal foi a ausência de um propósito negocial legítimo para a operação, uma vez que os beneficiários da distribuição, filhos dos sócios majoritários, não desempenhavam atividades estratégicas ou executivas na empresa no momento da transação, detendo na época apenas 2% do capital social.
A decisão reforça um alerta importante: a legalidade formal de uma operação não é suficiente para afastar a tributação, sendo essencial que haja um substrato econômico que sustente a estrutura adotada. O critério utilizado pelo TJSP segue uma tendência já observada em decisões fiscais e judiciais, que analisam a substância econômica das transações, aplicando a teoria da preponderância da substância sobre a forma. Em outras palavras, mesmo que a distribuição desproporcional esteja prevista no contrato social, como permitido por lei para as sociedades limitadas, caso a operação não esteja vinculada a uma justificativa empresarial plausível, poderá ser requalificada como uma transmissão patrimonial disfarçada, ensejando tributação pelo ITCMD.
Diante desse novo cenário, a estratégia de planejamento patrimonial precisa ir além da formalidade jurídica e incluir documentação sólida capaz de comprovar a existência de um racional econômico para a distribuição diferenciada dos lucros. Relatórios financeiros que demonstrem o desempenho dos sócios beneficiados, atas societárias que registrem a deliberação com base em critérios objetivos e acordos de governança que estabeleçam regras claras sobre a distribuição de lucros são medidas que fortalecem a legitimidade da operação. Além disso, a participação ativa dos beneficiários na gestão da empresa pode ser um fator determinante para afastar alegações de liberalidade.
Outro ponto relevante abordado pelo julgamento foi a sucessão dos atos societários. No caso concreto, a distribuição desproporcional foi seguida, meses depois, da doação de quotas dos pais para os filhos com reserva de usufruto (operação que, realizada no Estado de São Paulo, ainda é objeto de redução do valor do ITCMD devido), o que levou o TJSP a considerar que a operação tinha um único propósito: antecipar a sucessão patrimonial sem a devida tributação. Esse entendimento amplia o conceito de desconsideração da personalidade jurídica, que tradicionalmente era aplicado para fins de responsabilidade patrimonial e agora passa a ser utilizado também como ferramenta para desconsiderar estruturas societárias que aparentam ter caráter elisivo. Com isso, a fiscalização tributária passa a questionar não apenas a operação individualmente, mas a coerência de todo o planejamento patrimonial e sucessório ao longo do tempo.
Essa postura reforça a necessidade de um planejamento sucessório de longo prazo, no qual a distribuição de lucros e a transferência de quotas estejam inseridas dentro de um contexto mais amplo de reorganização patrimonial. O uso de holdings familiares, acordos societários que estabeleçam regras claras para a sucessão e a implementação de mecanismos progressivos de transição patrimonial são algumas das alternativas que podem conferir maior segurança jurídica às operações. Além disso, a utilização de fundos de investimento exclusivos e a adoção de estruturas híbridas de controle e governança podem ser caminhos estratégicos para evitar questionamentos fiscais.
A decisão do TJSP ocorre em um momento em que a tributação do ITCMD está no centro do debate legislativo. O projeto de lei complementar 108/2024, que chegou a prever expressamente a incidência do imposto sobre distribuições desproporcionais de lucros, teve essa previsão retirada do texto aprovado na Câmara. Apesar disso, a ausência dessa disposição não significa que o risco tributário tenha sido eliminado. O Fisco tem demonstrado uma tendência crescente de requalificar operações com base em princípios gerais do direito tributário, como o da prevalência da substância sobre a forma. Isso significa que, ainda que a lei não determine expressamente a tributação do ITCMD nesses casos, a interpretação das autoridades fiscais e do próprio Judiciário pode levar à mesma conclusão prática.
O julgamento do TJSP marca mais um capítulo na crescente fiscalização sobre operações de planejamento tributário e sucessório, demonstrando que a abordagem formalista já não é suficiente para garantir a validade das estruturas patrimoniais. Nesse contexto, torna-se cada vez mais fundamental para o contribuinte a sinergia entre as atuações consultiva e contenciosa, assegurando uma abordagem abrangente e proativa, essencial para a proteção do patrimônio e a continuidade dos negócios familiares. Enquanto o consultivo busca prevenir litígios por meio de orientações estratégicas e conformidade legal, o contencioso atua na defesa assertiva dos interesses dos clientes quando confrontados com desafios legais, garantindo uma gestão patrimonial segura e eficiente.
Desta forma, fica evidente que o planejamento patrimonial e sucessório não é uma atividade estática, mas um processo dinâmico que exige acompanhamento contínuo das operações e das tendências regulatórias e jurisprudenciais. A decisão do TJSP reforça que a formalidade jurídica, por si só, não é suficiente para garantir a segurança das estruturas patrimoniais, sendo imprescindível que haja um racional econômico sólido e bem documentado. Assim a constante adaptação das abordagens, o monitoramento das interpretações fiscais e a integração entre planejamento consultivo e contencioso tornam-se fatores indispensáveis para mitigar riscos, assegurar eficiência tributária e garantir a perenidade do patrimônio familiar.
Rafael Frota Indio do Brasil Ferraz, advogado, e Rodolfo Bustamante, sócio do Bhering Cabral Advogados